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Leto de "seu" Sales e "dona" Ceiça. Nascido em Serraria, no Brejo da Paraíba, em 1956.

5/19/2006

Humanismo, técnica e estética: Lucio Costa pensador (*)

Por Roberto Segre

Este artigo aborda um aspecto pouco analisado na obra de Lucio Costa, ao traçar uma comparação entre os enunciados políticos, éticos e estéticos — de impressionante atualidade — defendidos pelo mestre ao longo de sua vida e os prevalecentes no urbanismo e na arquitetura brasileira e mundial a partir da década de 30. Identificado com os movimentos progressistas, Lucio Costa propôs soluções de massa para a população mundial, o diálogo cultural entre as nações e uma linguagem arquitetônica na qual as novas técnicas expressassem as particularidades de cada país.

Qual é a profunda diferença entre Walt Disney e Osama Bin Laden?

O primeiro tentou resgatar e difundir para as futuras gerações as histórias, mesmo se falsificadas e idealizadas, das múltiplas civilizações que compõem o mundo. O segundo tentou impor sua história e eliminar os vestígios materiais das outras: a destruição das imagens de Buda no Afeganistão ou das torres do WTC em Nova York é uma amostra de seu fundamentalismo dogmático. Atitude que não está distante da política dos nazistas com os povos que eles consideravam “inferiores” e aos quais pretendiam apagar da memória, seja na destruição de Varsóvia ou no holocausto. Como afirma Andreas Huyssen, a importância da história neste início do século é a de resgatar a memória social — que é a reafirmação do homem como ser histórico, segundo Karl Marx — e aprofundá-la na essência de nossa contemporaneidade, construída com base na herança iluminista do século 18 e consolidada na modernidade do século 20.

Num período de crise como este em que vivemos, com a desintegração dos valores éticos e estéticos da modernidade, justifica-se a lembrança das contribuições dos fundadores do movimento moderno, na ocasião em que se celebra o centenário do nascimento de alguns deles: além de Lucio Costa (1902-1998), os também nascidos em 1902: Luis Barragán (1988), Josep Lluis Sert (1983), Marcel Breuer (1981), Johannes Andreas Brinkman (1949), Arne Jacobsen (1971) e Ivan Ilich Leonidov (1959). Os europeus, na criação e difusão da nova linguagem racionalista e construtivista da arquitetura e do design, tiveram um denominador comum: a leve cadeira para o Bauhaus, de Breuer; a inovadora fábrica Van Nelle em Roterdã, de Brinkman; a transparência do projeto do Instituto Lênin, de Leonidov; o rigor construtivo nas escolas de Jacobsen; a difusão das idéias dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (Ciam) no livro Can our cities survive?, de Sert. Para nós, na América Latina, tiveram grande relevância as figuras de Costa e Barragán, pela dedicação e luta que travaram por uma arquitetura moderna regional, autenticamente associada à identidade cultural local, tanto no Brasil como no México.

A obra arquitetônica e urbanística de Costa foi amplamente difundida, aqui e no exterior, em livros e ensaios, em particular as contribuições paradigmáticas ao longo de sua vida: o Ministério de Educação e Saúde, o pavilhão do Brasil em Nova York, o conjunto de apartamentos do parque Guinle, no Rio de Janeiro, e Brasília. Seu livro, Registro de uma vivência, e os recentes estudos de Cêça de Guimaraens e de Guilherme Wisnik documentam sua trajetória. Também seu desempenho como funcionário do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) foi registrado por José Pessoa. Menos conhecido é seu pensamento político, ideológico e estético, até agora parcialmente interpretado.

Suas idéias, recolhidas fragmentariamente por sua filha Maria Elisa Costa, não tiveram uma leitura crítica, como aconteceu com Niemeyer, no livro de Miguel Alves Pereira. Neste momento em que o debate local se radicaliza - entre os extremos do niilismo de Décio Pignatari e a esperança de Edson da Cunha Mahfuz — em torno da perda de qualidade da arquitetura “comercial” difundida nas cidades e da presença no Brasil dos arquitetos do star system internacional — Álvaro Siza, Jean Nouvel, Bernard Tschumi, Mario Botta —, os enunciados políticos, éticos e estéticos de Lucio Costa assumem impressionante atualidade.

Quais são os princípios essenciais de seu pensamento?

A identificação das novas formas e espaços com o desenvolvimento científico e tecnológico e as soluções de massa para a população mundial; a crença na necessidade de um entendimento entre povos e nações para acabar com as guerras e a corrida armamentista; a compreensão da multiplicidade de diferentes formas culturais e da possibilidade do diálogo criativo entre elas; a esperança no surgimento de uma linguagem arquitetônica baseada nos recursos das novas técnicas e capaz de expressar as particularidades de cada país.

Os fenômenos da mestiçagem e da hibridização cultural, hoje estudados por Serge Gruzinski, Zaera Polo e García Canclini, estavam presentes em sua afirmação de “assumir e respeitar nosso lastro original luso-afro-nativo”. Costa elaborou, na década de 1930, um ideário, iniciado com Razões da nova arquitetura, que não envelheceu, como se pode verificar na antecipação teórica das tendências atuais: ele sempre defendeu a “contemporaneidade” de sua visão da realidade brasileira, frente às acusações de José Marianno (Filho) de ser um “futurista” vazio e desnacionalizado. Não menos importante foi sua personalidade modesta e generosa, sempre distante da publicidade nas mídias. A “revelação” de Oscar Niemeyer não teria sido possível sem o apoio e a ajuda de Costa no MES, no pavilhão da Feira de Nova York e nas articulações projetuais em Brasília.

A insistência de Lucio Costa na simplicidade das formas puras aparece na difusão atual do minimalismo, desenvolvido no Brasil por Paulo Mendes da Rocha; a importância da herança histórica desenvolveu-se no regionalismo crítico aplicado por Severiano Porto; a significação da tecnologia local avançada se identifica com a obra de João Filgueiras Lima — em 1990, Costa elogiou Lelé. Os valores éticos e morais da arquitetura fizeram-no rejeitar as expressões frívolas e cenográficas — segundo Otília Arantes — do pós-moderno, lembrando que o autêntico foi aplicado por Le Corbusier na capela de Ronchamp.

Certezas políticas - O fato de ter construído dois dos mais significativos prédios modernos estatais do governo Vargas — o MES e o pavilhão do Brasil na Feira de Nova York — poderia fazer supor afinidade de Lucio Costa com a ditadura ou o autoritarismo. Nada mais longe disso. Mesmo que nunca tenha tido militância política declarada, ele foi sempre um homem com afinidades com a esquerda, identificado com os movimentos progressistas, no Brasil e no mundo. Essa postura foi evidenciada na completa rejeição ao jogo político local e às ligações ostentatórias com representantes do poder constituído. Não foi casual seu afastamento da equipe do MES no início do Estado Novo (1937), para tomar distância do governo e dedicar-se ao Sphan. Sua postura política se revela na foi simpatia pelo socialismo na URSS, na defesa dos interesses dos países de América Latina frente aos EUA, na sensibilidade com as dificuldades da população carente no Brasil e em suas idéias “discretamente marxistas”, como afirma Roberto Schwarz.

Desde a juventude, Costa foi um crítico do sistema capitalista, que considerava uma fase provisória no caminho para um futuro de bem-estar material e justiça social. Em 1926, em visita à Itália, criticou o autoritarismo e a megalomania teatral de Mussolini, afirmando: “É como se fosse um herói de cinema, um rival de Valentino”. Em 1932, reconheceu os problemas dos habitantes pobres no interior do país, a tristeza cinza do subúrbio urbano, a precariedade de cômodos, cortiços e favelas, constatando: “O que é preciso é quebrar este falso equilíbrio em que vivemos, esta consentida e chocante convivência 'normal' da miséria absoluta com a desmedida fartura”.

Seu empenho em resolver o problema da moradia na cidade e no campo se evidencia nas casas de operários em Gamboa, no Rio (1932), e na vila para operários de Monlevade-MG (1934). Costa adotou sempre uma postura digna e altiva frente às provocações de José Marianno (Filho) e de Arquimedes Memória, que o acusavam, tanto na direção da Escola Nacional de Belas-Artes como no projeto do MES, de reacionário, agitador comunista, antinacional e derrotista universal.

Em 1961, logo após a inauguração de Brasília, sensível às tempestades que se anunciavam no Brasil, com a instabilidade do governo Jânio Quadros, e na América Latina, com a invasão dos mercenários cubanos em Playa Girón para derrubar o governo socialista de Cuba com o apoio dos EUA, Lucio Costa escreve duas cartas: uma dirigida ao presidente do Congresso Latino-Americano de Arica e a outra “ao povo americano”.

Na primeira, ciente do caráter intervencionista dos EUA ao impor a “Pax Americana” na região, com os Peace Corps (“soldados travestis”), propõe que “a OEA se desprenda da velada — ou ostensiva — tutela da república dos EUA, e passe a designar-se Oaea, Organização Autônoma de Estados Americanos”.

Na segunda, procura explicar o absurdo da corrida armamentista e dos antagonismos criados artificialmente entre capitalismo e comunismo. Demonstrando que o “século americano” havia acabado em 1961 — visão premonitória da linha divisória definitiva que se estabeleceria no ataque às torres do WTC, 40 anos depois —, Costa imaginou que o novo mundo seria substituído pela “Nova Era”, uma época marcada pela união de todos os países, onde a antítese esquerda-direita desapareceria, prevendo uma “globalização” positiva, muito diferente da forma perversa atual. Finalmente, no início dos anos 1990, ele idealizou uma carta parabenizando Gorbachov pela decisão de acabar com a guerra fria, o nefasto armamentismo, e de tentar criar na URSS um socialismo democrático. Com essas idéias, sem dúvida Lucio Costa hoje estaria participando do Fórum Social Mundial, em Porto Alegre.

Humanismo e tecnologia - Segundo Cêça de Guimaraens, Costa representa “a união e reunião de romantismo estético e cientificismo iluminista”. Apoiando o “projeto moderno”, assim definido por Tomás Maldonado, foi um obstinado otimista, que acreditava em progresso social baseado no desenvolvimento científico e tecnológico que acompanhou a revolução industrial. Imaginou que surgiria a integração entre homem, natureza e tecnologia para criar um mundo melhor para a sofrida humanidade, onde a riqueza, associada às possibilidades da produção em massa, seria distribuída entre todos os povos do mundo - princípios semelhantes aos vaticínios de Marx em O capital, supondo a chegada de um sistema pós-capitalista. Ao afirmar que “o desenvolvimento científico e tecnológico não é oposto da natureza, mas a própria natureza que através do seu estado lúcido, que somos nós, revela o lado oculto, virtual”, Costa demonstra que “o intelecto e a consciência do homem são a quintessência da natureza tomada como um todo”.

Esse processo de industrialização intensiva — que coincide com a definição atual de Maldonado de sociedade “hiper-industrial”, e não “pós-industrial” — levaria necessariamente à integração de países e sistemas econômicos, que Costa define em sua “teoria das resultantes convergentes”, exposta em 1961, numa palestra no MIT-Massachusetts Institute of Technology. Ali define a mudança do novo mundo passado à “Nova Era” futura, onde seriam superados os “isolacionismos” contemporâneos, integrando as dissímiles tendências ideológicas e culturais, compreendendo desde “o gênio empreendedor norte-americano” até o “ressurgimento islâmico e oriental”. Superado “o nosso atual sistema econômico-social, fenômeno portanto passageiro”, a evolução da humanidade retomaria então, já em outro plano, o ritmo sereno de um ciclo histórico sem precedente, porque mais fecundo e, desta feita, verdadeiramente humano. É emocionante perceber a clareza conceitual e ideológica de Costa, que assume o “humanismo” de Marx caracterizado por Louis Althusser e prevê o que as forças progressistas estão reclamando para o século 21, ao afirmar que ”a coexistência é o signo dos tempos novos”. São os conceitos resumidos recentemente por Leonardo Boff, ao analisar as hipóteses para transformar o contraditório universo presente: “[...] surgirá uma nova democracia sociocósmica, um pacto social que não incluirá apenas seres humanos, mas toda a comunidade de vida, finalmente, reconciliada consigo mesma [...]”.

A estética da Nova Era - Essa síntese entre homem, natureza e tecnologia está presente na arquitetura, que desde Platão e santo Tomás de Aquino constitui a “adequatio intellectus et rei”. Também em sua visão estética e ética Costa não está longe do resgate de nossa disciplina, como síntese entre materialidade e pensamento, que se desenvolve no século 20 por meio da filosofia de Heidegger, Wittgenstein e Derrida. Primeiro, defende a criatividade individual em função das necessidades sociais, opondo à pseudo-antinomia da arte pela arte uma arte social. Segundo, articula a ética com as novas formas que se fundamentavam nos processos de renovação que aconteceram no século 20: “[...] estávamos convencidos que essa nova arquitetura que nós fazemos, essa nova abordagem, era uma coisa ligada à renovação social. Parecia que o mundo e a sociedade nova eram coisas gêmeas [...] de modo que havia uma ética, havia uma seriedade no que se fazia [...]”. Poder-se-ia argüir que a insistência de Costa na procura das formas puras e a defesa dos cinco pontos corbusierianos significariam a aplicação estática, no Brasil, dos enunciados do movimento moderno. Não é assim: Costa sempre falou da presença das particularidades locais, de “nossa maneira peculiar, inconfundível - brasileira - de ser [...] preservando e cultivando tais características diferenciadoras, originais [...] e recusando subserviência, inclusive cultural, mas capaz de absorver e assimilar a inovação alheia”.

Assim, ele definia a arquitetura como “construção concebida com uma intenção plástica particular, em função de uma época, de um meio, de uma técnica e de um programa determinados”. Ou seja, distante do regionalismo folclórico ou de formalismos preconcebidos, procurando a personalidade nacional “que se exprime através das individualidades do gênio artístico 'nativo', servindo-se dos materiais, técnicas e do vocabulário plástico de nosso tempo”. A procura das formas puras não era um exercício estilístico, como acontece com Niemeyer, mas uma síntese entre as duas tendências essenciais na arquitetura atual: a orgânico-funcional — identificada com os organismos vivos — e a plástico-ideal, esta produto do intelecto e da racionalidade que organiza geometricamente a matéria em formas plasticamente puras.

Sem dúvida, a dinâmica da arquitetura atual superou a simplicidade dos sólidos filebianos, com a complexidade das formas de Gehry, Libeskind e Koolhaas ou o dirty realism de Coop Himmelb(l)au e Venturi. Mas o minimalismo continua impondo o ascetismo da geometria elementar, nas obras de Tadao Ando, Dominique Perrault ou no recente Kursaal, em San Sebastián, Espanha, de Rafael Moneo. Nesse sentido, Costa apoiaria essa orientação que procura aplicar os avanços tecnológicos adaptados a uma função social. Mas, ao mesmo tempo, sempre lutou pela significação cultural e estética da arquitetura, como elemento transformador da cidade e da sociedade.

Por isso não concordaria com o lema “Menos estética e mais ética”, proposto por Fuksas na última Bienal de Arquitetura de Veneza. Ele se esforçou ao longo de sua vida pela concretização universal da estética arquitetônica e urbanística associada à ética: esta é a esperança a se materializar na Nova Era do século 21.

Publicada originalmente em PROJETODESIGN - Edição 265 Março 2002

(*) transcrito do site: http://www.arcoweb.com.br/debate/debate28.asp