Wellington Farias

A prisão não são as grades; a liberdade não é a rua. Existem homens presos na rua e livres na prisão. É uma questão de consciência." Gandhi

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Local: João Pessoa, Paraíba, Brazil

Leto de "seu" Sales e "dona" Ceiça. Nascido em Serraria, no Brejo da Paraíba, em 1956.

5/22/2006

Terrorismo em São Paulo: "Estão escondendo os corpos porque é tudo execução"

ENTREVISTA - FERRÉZ (*)

Em entrevista à Carta Maior, o escritor Ferréz denuncia onda de matança na periferia: "Estão escondendo os corpos porque é tudo execução, com tiro na cabeça. Hoje os policiais estão desfilando aqui na rua com toca ninja e camisa Le Coq, que é um grupo de extermínio da polícia".

Bia Barbosa - Carta Maior

SÃO PAULO – O balanço divulgado na noite de quinta-feira (18) pela Secretaria de Segurança Pública do governo de São Paulo totaliza em 152 o número de mortos na onda de violência que atingiu o estado na última semana. Destes, 107 foram mortos pela polícia em supostos confrontos. Muitos ainda não tiveram seus nomes divulgados e dezenas de corpos estão no IML (Instituto Médico Legal) a espera de identificação. Na quarta-feira, tiveram início as primeiras denúncias de que a polícia estaria cometendo abusos no combate aos ataques do PCC, o Primeiro Comando da Capital. Casos que começaram a estampar as páginas dos jornais e que agora não pararam de chegar às organizações de defesa dos direitos humanos.

Na quinta-feira, o escritor Ferréz fez um apelo à população em seu blog, para que todos ajudassem a divulgar que "a Policia Militar e a Policia Civil, afetadas com a onda de matança, estão fazendo da nossa periferia um estado pra lá de nazista". "Não está acontecendo confronto, e isso é uma prova que todos vão ter em alguns dias, quando a mídia começar a ir atrás de novas notícias e decidir falar a verdade. Não adianta ofender, não adianta ameaçar, a boca só se cala quando a guerra não for injusta", escreveu.

Reginaldo Ferreira da Silva – o nome literário é uma homenagem a Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (Ferre), e a Zumbi dos Palmares (Z) – nasceu no Capão Redondo. O bairro, na Zona Sul de São Paulo, é considerado uma das regiões mais violentas da capital. Filho de um motorista e de uma empregada doméstica, ele escreveu os primeiros versos aos sete anos de idade. Trabalhou como chapeiro numa lanchonete, balconista em bar e padaria, foi vendedor ambulante de vassouras e auxiliar-geral numa empresa metalúrgica antes de publicar suas primeiras obras. É autor de Fortaleza da Desilusão, Capão Pecado e Amanhecer Esmeralda. Em 1999, fundou a 1DASUL, um movimento que promove eventos culturais em bairros da periferia. E, em 2001, lança a revista Literatura Marginal, em parceria com a revista Caros Amigos, que recebe o Prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte de Melhor Projeto de Literatura.

Firme e forte, como "um elo da corrente", como ele sempre escreve, Ferréz concedeu à CARTA MAIOR a entrevista abaixo:

CARTA MAIOR – Você denunciou em seu blog que a polícia matou quatro jovens inocentes esta semana no Capão Redondo. Como isso aconteceu?

FERRÉZ – Todos os dias de manhã, eu vou a um bar tomar café. O bar fica em frente a uma pequena loja de camisetas que eu tenho lá na rua. Todos os dias eu via esses meninos lá. Um deles vendia flor, o outro, produtos de limpeza. Estão sempre lá tomando café também antes de irem trabalhar. Na segunda-feira, cheguei no bar e estava um movimento estranho. E aí me falaram que os caras tinham atirado nos meninos no domingo à noite. Eles estavam tomando cerveja numa barraca de lanches. Isso foi numa rua próxima, onde todo mundo sempre vai. Um lugar conhecido no bairro. Chegou um carro preto – alguns moradores disseram que viram uma viatura também –, desceram cinco homens de toca ninja e atiraram nas pessoas na barraca. Até o dono foi alvejado. Quatro morreram e três estão no hospital ainda. Um se chamava Maurício e o outro, Brigadeiro. Mas a polícia não divulgou ainda o nome dos mortos. O mais velho tinha 27 anos e nenhum estava envolvido com o crime. Dos três que estão hospitalizados, nenhum tinha passagem pela polícia. No Parque Ipê, que é uma favela, colocaram fogo na moto de um menino que entregava pizza. Ele também morreu. Invadiram as casas das pessoas, uma por uma. Invadiram as casas no meio da madrugada.

CM – Nesta quinta-feira, a polícia realizou uma operação com 400 homens na favela Helba, usando um mandado coletivo de busca. O que você acha dessas operações?

FERRÉZ – O estranho disso tudo é que não foi a população que declarou guerra à polícia militar. Foi o PCC. E quem está pagando é a população. A polícia recebe coação há tempos dos bandidos; ela criou este estado. E agora está guerreando com isso, porque solta as pessoas com alto grau de periculosidade. E quem paga é o povo, porque o cara do PCC não fica moscando na rua de bobeira. Aí a polícia pega o popular, confunde com outra coisa, e ripa o pessoal da favela. Tinha que ter mandado coletivo em Brasília, porque lá já foi provado que as pessoas são criminosas. Mas é mais fácil entrar na casa da população e bater num pobre do que olhar no olho de um ladrão, porque eles tremem quando isso acontece.

CM – Tremem por que? Você acha a polícia despreparada?

FERRÉZ – A polícia tem vontade de fazer alguma coisa e acaba fazendo com as pessoas, por despreparo dos policiais. As pessoas que estão morrendo agora não são culpadas. Me revoltei por isso. Por que é assim, matou e enterrou? A vida do cara é isso? Espera aí! O cara foi assassinado e isso não vai ser investigado porque ele é pobre? A polícia científica esteve no lugar em que os meninos morreram e começaram a perguntar pras pessoas se eles eram "nóia". Ou seja, estavam procurando alguma razão pra justificar depois as mortes. Este é o único país em que o morto é culpado. Você morre e ninguém investiga. Estamos recebendo várias cartas de outras pessoas denunciando isso. Não é possível que todos estejam mentindo. Não é possível que fique assim. Estão escondendo os corpos porque é tudo execução, com tiro na cabeça. Hoje os policiais estão desfilando aqui na rua com toca ninja e camisa Le Coq, que é um grupo de extermínio da polícia.

CM – Mas não é de agora que há denúncias de grupos de extermínio agindo na periferia com a participação de policiais. Em que a situação atual diferente da de antes?

FERRÉZ – Apanhar da polícia não é novidade. A polícia sempre pega as pessoas, bate, espanca, não acha nada e fica nervosa. A PM pega as pessoas e diz que elas são lixo, dão bronca porque não têm roupa, porque estão "desarrumados". Muitas pessoas acham isso estranho porque moram do outro lado da cidade, onde os cidadãos são tratados como seres humanos. Aqui é diferente. Mas chacina não tinha há muito tempo. Um cara entrar na viatura e sumir sempre tem. Mas chacina do jeito que está não tinha. E a mídia não reportou a chacina. Como 107 podem ser mortos suspeitos? Depois que a pessoa morre, como é que você recupera a vida dela?

CM – Como está sendo a atuação da polícia esses dias no Capão Redondo?

FERRÉZ – Estão pegando qualquer um que tenha ficha. Se tiver passagem, apanha. Tenho um amigo que foi solto há dois anos, estava trabalhando, sossegado. A polícia pegou a ficha dele e veio atrás. No sábado, ele foi às Casas Bahia pagar uma conta e, quando voltou, a polícia o seguiu, o pegou, levou e bateu muito nele. Deu choque, bateu com pedaço de pau. Ele estava com outro amigo. Depois foi solto. Agora ele não sai de casa mais, está super nervoso, não conversa com ninguém. Está revoltado de novo, porque estava trabalhando sossegado. Mas é assim que você cria uma fábrica de fazer vilão, pegando pessoas que não tem nada a ver. A guerra é entre o PCC e eles, e não com a população. Não temos que pagar por isso, não lucramos nada com isso.

CM – Diante do quadro histórico do país, você acha que essa crise de violência demorou para explodir aqui em São Paulo?

FERRÉZ – Essa situação existe há muito tempo e as pessoas não queriam ver. Há quatro anos publiquei um artigo na Folha de S.Paulo que já falava isso. Era pela guerra e pelo terror ou pela arte. Ninguém tem arte, cultura, informação. A prisão não reeduca, só repreende. O caminho é esse, o Estado vai se fortificando e já era. Mas hoje o Estado está submisso. Tinha que fazer política pública de segurança de verdade, e não brincar com a população. O Furukawa [secretário de Administração Penitenciária] e o Saulo [Abreu de Castro, secretário de Segurança Pública] estão brincando há muito tempo, até com a vida dos policiais, que estão abandonados. O cara está na rua, no combate corpo-a-corpo e não tem preparo, não tem curso, não aprende. Aí fica um brutamonte contra o outro na rua, e nós no meio, desarmados, querendo trabalhar.

CM – As pessoas estão conseguindo trabalhar esses dias?

FERRÉZ – As pessoas estão arriscando a vida para trabalhar. Tenho dois cunhados que voltam de noite pra casa, se arriscando. Mas as pessoas têm que ganhar o pão delas. O comércio aqui está fraco, está um clima estranho, as pessoas não saem de casa.

CM – Os senadores e deputados em Brasília devem aprovar nos próximos dias um pacote de leis para aumentar o combate à criminalidade. Há propostas com forte linha repressora. Você acha que este é o caminho?

FERRÉZ – Acho que o Estado está fazendo corda pra se enforcar. A elite já é suicida há muito tempo e agora o Estado está sendo. Quando você reprime uma criança no primeiro dia, ela sorri pra você. No segundo, já faz uma cara de desconfiada. No terceiro, ela te olha de cara feia. Tenho um amigo que diz que diz que quando você prende um cachorro e todo dia o chuta um pouco, quando você o solta ele te morde, e não te faz carinho. O sistema carcerário é a mesma coisa. Ele tem que ser uma tentativa de restabelecer o convívio do preso, e não só a sua punição. Quando ele for pra rua, vai reagir. Acho que essas leis são um tiro na testa. A questão do Brasil é de educação, desde o primeiro ano. Só que ninguém faz nada. Todo mundo que é um pouco mais esclarecido sabe que o negócio é mais embaixo. Mas infelizmente a coisa vai sendo levada na brincadeira. Essas leis de agora são medidas políticas, que fazem um governo aqui brilhar mais do que o de lá.

CM – Você falou que a elite é suicida há muito tempo. Por quê?

FERRÉZ – Em um estado onde uma pessoa tem milhões e a outra não tem o que comer no dia, esses mundos acabam se encontrando um dia. E é claro que vão se encontrar, porque é a gente que limpa a casa deles, que cuida da segurança deles, que dirige o carro deles. Não tem como um cara carregar uma carroça o dia inteiro e ver um Audi ali do lado, com um cara no ar condicionado confortável, e dar tchauzinho. As pessoas vão tomando ódio, porque querem que o seu filho também tenha respeito e educação, querem que o posto de saúde funcione, que os policiais não entrem na sua casa. Não é brincadeira. O dia em que a população estiver conscientizada, não vai ter como conter isso. Vai chegar uma hora que o povo vai gritar. Falamos que o brasileiro é pacato, mas quando a bomba explode, olha o que acontece? As pessoas trabalham doze horas por dia e não têm pão pra colocar na mesa. Isso é culpa de quem, do pobre?

CM – O governador Cláudio Lembo deu uma entrevista para a Folha de S.Paulo em que responsabilizou a elite sobre o que está acontecendo. O que você acha disso?

FERRÉZ – Todo cara da elite retrata a elite como se fosse o outro. A elite sempre é o cara que tem mais do que eu. Eu tenho pouca terra, tenho pouca Mitsubishi, pouco Chrysler. Mas elite é o outro, que tem iate. A elite não se enxerga como elite. Ninguém é culpado...

CM - Você é de uma região que já foi considerada uma das mais violentas do mundo. Ainda há um estigma da classe média e da classe alta em relação à população da periferia?

FERRÉZ – Pra mim, muita gente da classe média e da classe alta também é ladrão. Vivem explorando os outros. Eu acho que tínhamos que abrir a conta dessas pessoas, fazer uma reviravolta no passado delas. Os bancos estão ganhando 60% de lucro por ano num país que é miserável. Algo está errado. Não é à toa que queimaram as agências bancárias. Depois falam que o crime não está politizado. Tem coisa mais politizada que queimar agência bancária?

CM – Há regiões da cidade em que a população diz que tem mais medo da polícia do que dos criminosos, porque não sabe que tipo de comportamento esperar dos policiais. Você concorda com isso?

FERRÉZ – Sim. A farda causa uma coisa estranha. Você conversa com um policial num dia e, no outro, se ele passa na viatura, nem fala com você. Tem uns policiais do bairro que vão na minha loja, pedem desconto, e no dia em que estão fardados nem me olham na cara. Não não existe polícia que sorri pra uma criança, que fale bom dia. A polícia comunitária é uma piada. Nunca vi isso, é um fracasso. É a mesma arrogância e prepotência; não mudou nada. Já os bandidos mataram apenas um civil, a namorada do policial, porque ele bateu o carro e ela estava dentro. Pelo lado dos policiais, quantas pessoas morreram? Acho que a máscara vai cair uma hora. Quando divulgarem os nomes, vão ver que muitas das pessoas não têm passagem, não têm nada a ver com a coisa. Isso se contarmos somente as mortes que foram assumidas, porque o IML falou que está cheio de cadáveres que não há como identificar. E os massacres que não entraram no índice? Além da morte desses quatro meninos, um outro morreu no Parque Santo Antônio e mais dois foram atingidos num campo de futebol. A viatura chegou, os caras saíram de touca ninja, mandaram os caras que estavam conversando no campo à noite se ajoelharem e atiraram nos moleques. Um morreu e o outro está no hospital. De dia são as abordagens pra bater. De noite, o bicho está pegando.

CM – Esta noite não houve mortes, pelo menos divulgadas. Você acha que a situação se acalmou?

FÉRREZ – Não sei. Estou como a população de São Paulo. Sem saber o que vai acontecer.

(*) Transcrito de Carta Maior